Tuesday, June 14, 2005

Eugénio, Al Berto e Pitta

O poeta e crítico Eduardo Pitta escreveu uma coluna no Diário de Notícias de hoje, sobre a morte de Eugénio de Andrade, sobre a coincidência de Al Berto ter morrido no mesmo dia, e sobre a homossexualidade de ambos.

Porque a literatura é feita de espaços e de territórios, porque os dois poetas portugueses tinham em algum momento da sua vida calcorreado as ruas de Coimbra… aqui vai o texto.

De resto só nos pode ficar o agradecimento a Eduardo Pitta pela lucidez e pela coragem ao escrever este texto tão belo… e duro!

Eugénio e os áulicos

Eduardo Pitta

Eugénio de Andrade morre no dia em que se completam oito anos sobre a morte de Al Berto. A coincidência arrasta consigo um travo irónico, mas vai com certeza passar despercebida. Al Berto pertencia às tribos da noite. Eugénio foi sempre um poeta do establishment. Se fosse russo teria direito a datcha na costa setentrional do Mar Negro, que é o equivalente "rústico" de um palacete no Passeio Alegre. Nada disto é fruto do acaso. Supremo percalço, a morte de Cunhal, ocorrida na mesma madrugada, corrige a pontaria dos holofotes.

Não se veja acrimónia neste breve intróito. Um poeta como Eugénio, provavelmente o último de uma linhagem de poetas populares (Florbela Espanca, António Botto, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Al Berto), quando desaparece do nosso convívio, merece ser lembrado como alguém que suscitou paixão. Ainda há pouco tempo lembrei que ele nos ia deixar meia dúzia de poemas definitivos, e meia dúzia só pode parecer pouco aos tontos do costume. Poemas como Green God, de As Mãos e os Frutos (1948), e Adeus, de Os Amantes sem Dinheiro (1950), iluminam um fugaz entreacto que cessa com As Palavras Interditas (1951). Dito de outro modo a partir de Até Amanhã (1956), Eugénio foi progressivamente rarefazendo o sentido do discurso, obnubilando, e deixando que outros obnubilassem ainda mais, aquilo que um poeta tem de mais sagrado a sua identidade. A condição homossexual foi reiteradamente branqueada, e "o lume breve entre as nádegas" submerso sob a cal de todas as conveniências. Breves lampejos (em 1972, com Obscuro Domínio, deu-se um episódico retorno à ordem falocêntrica) nunca beliscaram o perfil hierático. O resto encontra tradução em dois versos eloquentes "Não dizias palavras, ou só dizias / aquelas onde o rosto se escondia." (Ostinato Rigore, 1964).

E desse modo Eugénio foi impondo um discurso que se tornou o paradigma do não-dito. Mais grave, porém - o autor tem sempre direito à sua dose de elipse -, foi o comportamento da crítica, a qual, se no tempo da ditadura podia ter tido razões que a exegese desconhece, deixou de tê-las no dia a que Sophia chamou "O dia inicial inteiro e limpo". Tal não aconteceu. Eugénio foi sendo incensado com loas, enquanto os áulicos que à sua volta parasitam cuidavam de erguer um panteão de "respeitabilidade". Terá valido a pena? É provável que um dia, quando a distância permitir uma avaliação fria, a sociologia da literatura nos dê respostas.

Refém de uma estratégia de representação equívoca, jogando o jogo dos referentes sem género gramatical, confrontando-se com Cernuda e Sandro Penna, Eugénio construiu uma obra formalmente inatacável, com momentos de excepcional conseguimento, quais sejam os títulos já referidos, mas também Limiar dos Pássaros (1976) e O Peso da Sombra (1982). O balanço é francamente positivo, e manda a verdade dizer que a questão identitária não pode nem deve servir de empecilho ou álibi. Com a sua morte fecha-se um capítulo do século XX português.

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